23/10/2019

Viva Angelino de Oliveira…

Não me recordo com precisão a data, mas o ano era 1982… 

Chico Múrcia, Reinaldo Piozzi, Jovelino Secco, Sidney Pereira, entre outros amigos do Angelino de Oliveira, preparavam um evento em celebração à memória do compositor. 

Na ocasião eu ainda engatinhava artísticamente e integrava uma dupla caipira – gosto mesmo de dizer caipira, porque nosso repertório era clássico, Torres e Florêncio, Zé Carreiro e Carreirinho, Tonico e Tinoco entre outros – Zé Lira e Ribeirinho. O Zé era sobrinho do Chico e do Sidney e assim estávamos no cerne desse movimento, acompanhando tudo com muita proximidade. 

O vereador Alvaro Picado, em consonância com o grupo preparava uma lei para instituir oficialmente a homenagem. Uma noite, nos reunimos com o grupo, na casa do Jovelino para conhecer mais sobre a obra do compositor. Até então, sinceramente, eu, como a maioria das pessoas, conhecia apenas Tristeza do Jeca. Isso me fazia pensar no Angelino como um compositor de música caipira – estilo batizado por ocasião da empreitada do Cornélio Pires, que em 1.929 reuniu duplas, conjuntos, músicos e cantores do interior do estado e produziu, de maneira independente, uma série de discos. Foram os primeiros registros fonográficos daquilo que convencionou-se chamar de música caipira. 

Voltemos então para a sala da casa do Jovelino. Não me recordo exatamente as pessoas que estavam lá naquela noite, se tinha alguém da família do Gastão D’alfarra, se estavam lá outros músicos da cidade, mas me recordo que a dona Terezinha, esposa do Jovelino, ao piano nos apresentou uma expressiva quantidade de músicas, todas contidas na coletânea que fora organizada pelo Gastão em 1.970. As comemorações estavam para acontecer e eu e o Zé escolhemos – ou fomos escolhidos – para apresentar Prece e Encruzilhada. Nossa referência na época, foi apenas o toque do piano da dona Terezinha e o cantarolar emocionado dos amigos ali reunidos. 

Prece, ou Prece de Caboclo, é um valseado que não tinha nenhum registro fonográfico e que passados 36 anos tive o privilégio de gravar no meu álbum Arredores – e Encruzilhada, que hoje pode ser encontrada no Youtube em algumas versões, na voz de diferentes artistas, gravadas ainda nos pioneiros 78rpm e num registro mais contemporâneo pelo amigo e cantador Cláudio Lacerda. 

O que me deixou mais curioso na época, é que os conteúdos apresentados naquela noite eram bem diferentes do que a gente estava acostumado a chamar de música caipira. A primeira semana comemorativa aconteceu no mês de junho de 1.982 e precedeu a aprovação da lei, que em agosto do mesmo ano instituiu oficialmente a Semana Angelino de Oliveira, que compreendia a data que, até então, era reconhecida como nascimento do compositor, 17 de junho de 1.889. 

Mas isso é uma outra história…

30/10/2019

Nasceu Angelino!

Mas não nasceu naquela serra, ou seja, “nessa” serra aqui de Botucatu.

Angelino nasceu em Itaporanga, também interior de São Paulo, quase divisa com o Paraná. Itaporanga é uma palavra indígena que significa Pedra Bonita. O nome foi criado em 1.898, quando o então povoado de São João Batista de Rio Verde, elevado a vila em 1.871, foi elevado a cidade. E na ainda São João Batista do Rio Verde nasceu Angelino.

Até o ano de 1.990 quando Marilda Baunguertner Cavalcanti pesquisou e escreveu “Angelino de Oliveira, o inspirado autor de Tristezas do Jeca” era fato corrente que o compositor havia nascido no dia 17 de junho de 1.889. No decorrer das pesquisas, Marilda encontrou o registro batismal do compositor, que data de 16 de maio de 1.888 na Igreja de São João Batista, pelo Padre Décio Augusto. A data apontada como de seu nascimento é 21 de abril de 1.888, ou seja, mais de um ano antes das documentações até então conhecidas. Não era incomum, naquela época, a divergência de datas, por uma série de fatores e dificuldades de registros, tranportes e mesmo procedimentos documentais, mas curiosamente, o próprio Angelino jamais desfez esse equívoco. Em sua matrícula na Escola de Farmácia e Odontologia de Ribeirão Preto, consta a data de 17 de junho de 1.892 e em sua última cédula de identidade, expedida em 1.958 consta 17 de junho de 1.889.

O livro de Marilda é um importante documento, foi publicação pioneira sobre a vida do Angelino, servindo inclusive de bibliografia para, posteriormente, a edição do livro do violeiro Paulo Freire “Eu nasci naquela serra” e diversas outras pesquisas sobre o músico.

Por fim, mais um episódio sobre a vida do Angelino de Oliveira foi desvendado pela Marilda e o passar dos anos permitiu construir com mais fidelidade a biografia desse grande e importante personagem da música popular brasileira. Angelino de Oliveira (Itaporanga, 21/04/1888 – São Paulo, 24/04/1964)

06/11/2019

Angelino de Oliveira e A Música Caipira.

(texto recuperado de publicação minha para material de divulgação da Semana Angelino de Oliveira)

A música caipira, que denominamos também música de raiz apareceu no cenário fonográfico brasileiro no final da década de 20, mais precisamente em 1929, com o registro das primeiras produções de Cornélio Pires.

Nessa época, o compositor Angelino de Oliveira já possuía registradas e gravadas diversas de suas composições, todas elas sem nenhum vínculo com o gênero que se convencionou chamar, na época, de música caipira e atualmente também de música de raiz. Dentre sua produção musical encontramos valsas, canções, tangos, sambas, e até foxtrot, ritmos bem diferentes dos caipiras cururus, cateretês, catiras, lundus e modas de viola, entre outros.


A etimologia da palavra caipira é tão controvertida quanto as referências biográficas e musicais do Mestre Angelino, porém, temos a certeza que sua origem é indígena, derivada do Tupi, e revela o primeiro traço da miscigenação cultural de nossa região, a mistura da cultura indígena com a cultura portuguesa, que mais tarde absorveria também alguns elementos da cultura africana.


Em seus registros consta que Angelino nasceu na cidade de Itaporanga em 17 de Junho de 1889, porém a pesquisadora Marilda Cavalcanti, encontrou o registro batismal do compositor que teria nascido, na verdade, em 21 de Abril de 1888. Angelino foi comerciante, dentista, escrivão de polícia e diretor artístico da PRF-8. Tocou violão, violino, guitarra portuguesa e trombone. Foi músico da Banda São Benedito em 1908, da Orquestra do Grêmio Literário e Recreativo em 1911, a partir de 1917 formou o duo Violguita (violão e guitarra) com José Maria Perez e o trio Viguipi (violão guitarra e piano) com Perez e o pianista Luiz Cardoso. Fundou na década de 40 a Jazz Band Carlos Gomes.


A mundialmente conhecida Tristezas do Jeca foi gravada pela primeira vez em versão instrumental no ano de 1922 pela Orquestra Brasil-América, em 1926 foi regravada por Patrício Teixeira, cantor carioca contemporâneo e amigo de Donga e Pixinguinha. Em 1937 o aclamado Paraguassu, interprete renomado de modinhas e serenatas, endossou a trajetória de sucesso da até então canção registrando a obra em sua voz. Paraguaçu já havia gravado músicas de Angelino em discos anteriores, Tenho Pena dos Meus Olhos em 1931 e Lua Cheia em 1936, esta no mesmo ano em que gravou Luar do Sertão de Catulo da Paixão Cearense. A partir da gravação de Tonico e Tinoco, com estrondoso sucesso, a outrora canção, rebatizada como toada, alçou vôo para se tornar uma das grandes obras de nosso cancioneiro popular, com grande número de regravações e releituras.

Um evento que pretende homenagear e preservar a memória de um grande compositor como Angelino de Oliveira não pode restringir-se à difusão de algumas poucas composições, muitas vezes vinculadas a um movimento musical que não contempla a universalidade de sua produção autoral, nem tampouco propiciar a instalação de uma distorção histórica em torno de sua obra e principalmente de sua personalidade. A memória de um compositor merece o resgate e a releitura de seus trabalhos, a difusão de sua história e o reconhecimento de seu valor. Merece uma celebração com personalidades de trajetória coerente com o perfil de nosso poeta. Merece a força e a beleza de grandes canções, o talento emergente dos novos compositores e o estímulo ao cultivo da criação musical. 


Em 2005 procuramos esse caminho, homenageamos Angelino, apresentamos diversas de suas canções, algumas muito pouco conhecidas, na interpretação de músicos de nossa cidade que deram novas cores à sua obra. Homenageamos Serrinha e Raul Torres, outros expoentes musicais de Botucatu, e estendemos as homenagens aos criadores de nossa música popular apresentando artistas cujas canções alcançaram tanto ou mais sucesso do que eles próprios, Paulo Simões (Trem do Pantanal e Comitiva Esperança) e Belchior (Como Nossos Pais e Paralelas). À partir de 2006 adotamos novo formato levando as comemorações com caráter mais educativo, trabalhando junto à escola e à comunidade como uma maneira de fortalecer e aprofundar as homenagens ao compositor.
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“O cultivo de sua memória ainda não alcançou sua produção musical. Poucos botucatuenses conhecem mais de 3 ou 4 músicas de Angelino, e foi isto que mais me chamou a atenção quando, em 1998, comecei a pesquisar sua vida.Talvez por isso, o desconhecimento de sua produção musical, criou-se no passar dos anos esse mito de compositor caipira, fato que encontra pouca sintonia com sua obra.” 

Fernando Binder , músico e pesquisador
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“Era filho único de modestos lavradores. Em 1894, seus pais mudaram-se para Botucatu. Autodidata, aprendeu a tocar vários instrumentos. Realizou curso de dentista prático em Ribeirão Preto. Retornou a Botucatu, onde abriu uma loja de instrumentos musicais. Foi chamado de “O Catulo de Botucatu”, numa alusão ao poeta e compositor Catulo da Paixão Cearense.” 

Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira

13/11/2019

Tristezas vem da Alma…

100 anos de Tristezas do Jeca!!

A imaginação viaja…  O local era o Clube 24 de Maio. Presidindo a mesa da sessão solene o dr. Nestor Seabra. Angelino de Oliveira e o professor José A. Wagner acompanham o canto das normalistas Maria Banducci e Amélia Gouveia. Ao final da apresentação, segundo relato que encontramos registrado pela primeira vez no livro da Marilda Baunguertner Cavalcanti  “Angelino de Oliveira, o inspirado autor de Tristezas do Jeca”, a platéia efusiva conclama bis por seis vezes consecutivas. Assim nasceu, aos ouvidos do público, a canção Tristezas do Jeca. 

O livro relata esse episódio como parte da posse do dr. Nestor Seabra na presidência do referido clube, supostamente em 24 de maio de 1.918. O violeiro Paulo Freire corrobora a informação no seu livro “Eu Nasci Naquela Serra”. Até pouco tempo atrás, comumente eu citava o acontecido, em entrevistas, rodas de conversas, prosas entre amigos. 

Ano passado, a convite da Cris Cury, secretária de cultura, integrei uma comissão para prepararmos a tradicional Semana Angelino e a comemoração pelo centenário desse clássico da música brasileira. Durante o processo de produção, pequisando possíveis novas perspectivas, me deparei com um relato que divergia da data de 1.918 como ocorrência da primeira apresentação da música. Com a pulga atrás da orelha, e uma boa dose de curiosidade, resolvi apurar os fatos com mais cuidado. 

Grande parte da memória de Botucatu está guardada no Centro Cultural e foi lá que busquei rastros da verdadeira história, encontrando-a nas atas do 24 de Maio e nos jornais da época.

Convicções, contradições e revelações…

  1. No livro da Marilda, informação possivelmente obtida de maneira oral, consta que a música teria sido apresentada na posse do dr. Nestor Seabra como presidente do clube, porém, tanto nas atas quanto nos jornais o presidente empossado em 1.918 foi o dr. Mário Rodrigues Torres. Essa é a primeira contradição que corrobora com a dúvida apresentada no blog do jornalista Renato Fernandes.
  2. O dr. Nestor Seabra tomou posse como presidente do clube no ano de 1.919, o que reforça a convicção de que o ano de 1.918 foi equivocadamente reconhecido como o ano da primeira apresentação da Tristezas do Jeca.
  3. Na data de 24 de maio, aventada por muitos como a data dessa primeira apresentação, que poderia ter ocorrido em 1.919 quando da posse do dr. Nestor também não encontramos nem nas atas e nem na imprensa nenhuma citação  referente ao fato.
  4. Finalmente, nos jornais, encontramos algo próximo do episódio citado no livro da Marilda e posteriormente replicado por outros. No Clube 24 de maio, em 15 de novembro de 1.919, celebrando à Proclamação da República, em evento organizado pela Comissão Regional de Escoteiros foi composta mesa presidida pelo dr. Nestor Seabra. Na programação musical o professor José A. Wagner e Angelino de Oliveira, acompanharam as célebres normalistas em número musical.
  5. O que cabe como revelação e complementa esses relatos é que a música apresentada, identificada como letra e música do Angelino, intitulava-se “Alma do Jéca”.

Nunca ouvi falar de uma possivel “Alma do Jéca”, ainda mais apresentada em condições quase idênticas aos relatos sobre a primeira apresentação da Tristezas do Jeca, o que pressupõe que sua primeira denominação é a encontrada nos documentos. 

Temos assim, uma nova perspecticva sobre o episódio, corroborada pela imprensa e por documentos do Clube 24 de maio, que aponta a data correta para celebrarmos o centenário da Tristezas do Jeca como 15 de novembro de 2.019, ainda que as Tristezas tenham originalmente nascido da Alma.

20/11/2019

Uma canção em liberdade!!

Hoje, nessa coluna semanal – que ainda não foi devidamente – batizada, seguimos falando de Angelino de Oliveira, esse compositor tão querido pela cidade de Botucatu e que tem ainda muitas faces musicais a serem reveladas. 

Voltemos ao caderninho de letras, organizado pelo Gastão D’alfarra na década de 70. O Gastão foi amigo inseparável do Angelino. Tocava violão e era extremamente performático quando apresentava-se ilustrando momentos culturais ou mesmo em roda de amigos. 

Parte de memória musical do Angelino estava contida ali, naquela publicação simples, em preto e branco, com uma ilustração do prof. Hugo Pires reproduzindo a clássica, e uma das poucas, foto do Angelino com o violão nos braços.

Do carinhoso caderninho, salvo me falhe a memória, aprendi as melodias de Encruzilhada, Manhãs de Minha Terra, Saudades de Botucatu, Flor de São João, Prece de Caboclo, Sabiá e Cabocla do Setão ainda no começo da década de 80. Na mesma publicação pude conhecer, na íntegra, a letra da Tristezas do Jeca, que na maioria de suas gravações teve suprimida uma de suas quatro estrófes. 

Porém, de muitas outras letras contidas no mesmo não me lembro de ter tido indicação ou referência sobre melodia e harmonia, se é que todas tinham sido musicadas.

Integrante desse acervo, uma peça intitulava-se “Cativeiro”, e a letra apontava resquícios do período da escravidão, mazelas sociais e relatos da desumanidade  que se alastra no preconceito.

Tive contato com a melodia, adormecida na pauta, transcrita pelo Fernando Binder em trabalho de pesquisa por volta do ano 2.000. Ao amigo Daniel dos Santos, uns dez anos depois, solicitei, se possível, que despertasse e melodia e trouxesse vida às suas notas musicais, pequenos milagres da tecnologia. 

Guardei a melodia durante outros quase dez anos e violão em punho, encontrei harmonias que sustentassem o conjunto.

Hoje, 20 de novembro, dia da Consciência Negra, me arrisco ao violão, a libertar essa canção.

CATIVEIRO

Mãe Maria tá doente, tão chamando o seo dotô

Mãe Maria dormiu muito, foi por isso que apanhou

Nego Véio tá doente, morreu só de judiação

Mãe Maria agonizando tá chamando o Pai João

Vai te embora, ó cativeiro

Tu não deixas uma saudade

Nego Véio está doente

Quer descanso e liberdade


conheça a canção: Cativeiro